Ferry é rapper há 9 anos e vive na linha de Sintra, uma zona apelidada de “complicada”, mas onde muitas das vezes a maior complicação é causada pela desigualdade social que o Estado promove.

 

Entrevista com Ferry

 

Ferry, obrigado por aceitares dar esta entrevista. Diz-nos, para quem não te conhece, fala-nos um pouco de ti, e como chegaste até este ponto.

Eu sou só um gajo que gosta de Rap. Cresci na Reboleira, Amadora, e sempre adorei escrever. A partir do momento que conheci o Rap (em 96/97) não quis saber de mais nada. Comecei a rimar sozinho, mesmo do tipo “ei, não tenho nada para fazer, vou fazer um som”. A partir daí foi natural…e nem eu sei como cheguei a este ponto, ou “como só cheguei a este ponto”. A verdade é que já lá vão 9 anos a fazer Rap e ainda luto para conquistar o meu espaço. Actualmente, divido a minha vida entre os trabalhos temporários que arranjo aqui e ali, a universidade (estou a fazer um Mestrado em jornalismo) e o Rap.

 

O que é para ti o Rap/HipHop?

Para mim, tendo em conta o mundinho utópico onde o meu cérebro reside, Rap e HipHop são acima de tudo união e camaradagem. É um ambiente de paz e cumplicidade que é tão raro nos dias de hoje, aliado à transmissão de conhecimentos, sobretudo à geração mais jovem, para que esta saiba como lidar com certas situações típicas de um ambiente suburbano. Acho que foi KRS One quem definiu o Rap como “The CNN of the ghetto”, ‘nuff said. Mas infelizmente, fora do meu mundinho utópico, o Rap já deixou de ser isso há muito tempo. Mesmo assim, apesar de ter alguns sons que constituem excepções, é sobretudo esse tipo de Rap que tento fazer; algo que possa servir de ajuda a pessoas em situações menos boas.

 

SerialSkillers, quem são e como é que começaram?

SerialSkillers é tipo o melhor grupo de Rap de todos os tempos. O TANB não canta nada mas é um gajo fixe, e eu canto bué mas não sou um gajo muito fixe. Logo, complementamo-nos um ao outro.
Formámos o grupo em 2004, na altura com mais pessoal (La Dupla, Tamin e Nova Guarda). Só que o grupo era demasiado grande, e morávamos todos longe uns dos outros…Não resultou. Acabámos por nos separar e ficámos só os dois.
Eu sou uma beca bipolar: Tenho o meu lado street, e tenho o meu lado estúpido (mas mesmo muito estúpido). O Rap que faço a solo, maioritariamente, reflecte as minhas experiências na rua, coisas que me aconteceram ou aconteceram a quem me rodeia. Já a maior parte do Rap que faço com o TANB, reflecte uma pantufa coberta de manteiga de amendoim pendurada numa marquise da Damaia de Baixo. É uma cena fixe porque ele é muito parecido comigo em termos de personalidade. É raro não chegarmos a um consenso imediato quando se trata de escolher temas para faixas ou dicas para um refrão.
Mesmo assim, tanto por preguiça como por falta de disponibilidade, tanto eu como o TANB temos muito mais cenas feitas a solo do que como SerialSkillers. Temos planos de fazer algo para fim de 2012/princípio de 2013. Espero que vá em frente porque, se for, é fuckin’ bomba garantida.

 

Do que se conhece, nunca vendeste um CD, mas já tens várias dezenas de sons gravados. Nunca te interessou comercializar a música, ou achas que a cultura musical deve ser livre?

A mim interessa-me comercializar a música. O que é necessário é saber a diferença entre comercializá-la e prostitui-la. Eu não vou mudar o meu estilo de Rap e começar a falar dum amor que não estou a sentir, ou dum BMW que nunca conduzi só para poder vender. Vou continuar a rimar sobre o que eu conheço e ser fiel ao meu conteúdo como ser humano.
O problema é que, pelo menos até agora, este meu conteúdo como ser humano não serviu para mais do que me dar uma pseudo-fama num circuito de Rap-Underground onde ninguém compra CD’s. A meu ver, sem ter um nome de maior dimensão, se escolhesse investir na comercialização de um álbum, o mais provável seria ficar no prejuízo. Enquanto assim for, os meus trabalhos serão gratuitos.

 

Como vês a política e a forma de governar deste país? És simpatizante de algum partido?

Está cá o F.M.I, isso diz tudo o que precisamos de saber acerca dos governos destes últimos anos. E o Peter Steps Rabbit também não sabe o que está a fazer em São Bento.
Eu até curto Jerónimo de Sousa, parece-me um gajo justo e ciente dos problemas deste país. Mas não me considero apoiante do PCP. Aliás, sempre que votei foi em branco.

 

Consideras que o F.M.I. veio estragar ou denegrir a nossa sociedade? E o que achas da governação que aconteceu ntes do F.M.I. cá chegar (da última vez, é certo)?

Eu não sou, nem de longe, um expert em política mas acho que o F.M.I está cá para fazer aquilo que o nosso Governo não consegue fazer. Acho que é necessário estarem cá para que, a longo prazo, Portugal volte a ser uma nação pobre, e não paupérrima como é agora. A meu ver, a sua presença no país é de inteira responsabilidade dos últimos Governos que tivemos. Não estão cá para estragar a nossa sociedade, mas é normal que, antes que consigamos subir, tenhamos que descer ainda mais.

 

Estás a tirar um mestrado. Achas difícil a educação em Portugal para quem não tem grandes posses económicas? Já foste afetado pela crise na educação?

A maior parte dos sistemas de educação deste planeta tendem a favorecer um certo tipo de classicismo. Se és filho de um carpinteiro e de uma mulher-a-dias, é muito menos provável que vás para a faculdade do que se os teus pais forem os dois doutorados. O Ensino Superior não é barato, e quem vem de uma classe social mais baixa tem de ter uma tremenda força de vontade e espírito de sacrifício para conseguir completá-lo. É uma boa forma de os ricos continuarem ricos e os pobres não deixarem de ser pobres. No meu tempo de licenciatura ainda existiam algumas (poucas) bolsas de estudo, mas agora com a crise cortaram nisso tudo. Qualquer aluno, até um que seja advindo de uma família com mais posses, sofre com a situação económica do país. Uns mais, outros menos, mas todos a sentimos.

 

Reboleira. Muitas pessoas que não estão no meio do hiphop vão dizer que é um bairro perigoso, linha de Sintra, etc. O que achas? Estes são estigmas sociais criados por quem lá está dentro ou por quem os vê de fora e acusa sem saber?

Sinceramente acho que é um pouco dos dois. Se a minha zona tivesse tanto crime como a Quinta da Marinha não teria o nome que tem. Não somos nenhuns coitadinhos a ser estigmatizados pelos Media. A dica do “fama sem proveito” não pode ser aplicada nem à Reboleira nem à grande maioria dos designados “bairros de risco” da Tuga.
O problema surge quando a polícia ou as pessoas de fora (principalmente quando se trata de pessoas que nos podem empregar) nos tratam a todos como iguais. Se o meu vizinho é criminoso isso não quer dizer que eu também o seja. Isso é uma falácia de falsa generalização.
Eu sou dono da minha cabeça, posso bulir oito horas por dia, sair do bules e ir para a Universidade, chegar à minha zona à uma da manhã e beber uma birra com um amigo de infância que por acaso se tornou num traficante. Essa meia hora de descontração que eu passo com esse amigo traficante torna-me igual a ele e anula as 12/13 horas do dia que passei a ser um cidadão exemplar? Só porque convivo com essa pessoa no meu tempo livre? Eu conheço muitos criminosos na Reboleira, mas conheço muito mais pessoas honestas, que trabalham para sustentar as suas famílias e levar uma vida tranquila, e que muitas vezes comem por tabela. Se há rusga a polícia entra a varrer, desrespeita e insulta tudo e todos, às vezes bate à toa, trata-nos a todos como se fossemos culpados. Depois admiram-se de ver mensagens como “fuck the police” escritas nas paredes. Se agissem de modo diferente os putos que estão a crescer agora não cresceriam com o mesmo ódio à polícia com que a minha geração cresceu. Estão a tornar isto num ciclo vicioso.
As pessoas de fora também são um pouco assim. “Ah este é do sítio X? É melhor não dar confianças porque ali são todos iguais”. Essa mentalidade parece-me um pouco retrógrada. Durante os meus anos de licenciatura fiz vários bons amigos que vinham de ambientes diferentes do meu. Convidei uns quantos para passar um dia comigo aqui e com o meu pessoal. Muitos não quiseram, muitos se mostraram reticentes mas acabaram por vir, poucos aderiram de imediato à ideia. Contudo, os que vieram adoraram, e alguns ficaram amigos do meu pessoal e aparecem regularmente, mesmo quando eu não estou cá. Acho que isso demonstra o quanto as coisas podem ser diferentes quando experienciadas do que quando relatadas.

 

Para a comercialização da tua música, hipoteticamente falando, irias usar a SPA? A SPA é apelidada de muita gente por pessoas que “servem os músicos ricos”. Concordas?

Em nove anos de Rap nunca registei absolutamente nada na SPA. Não por ser contra, mas porque o meu Rap não é um negócio. Eu acho que, quando a tua música começa a envolver marketing, a SPA é uma burocracia chata, dispendiosa, mas necessária. Ela não serve apenas os músicos ricos, se fores um Sam, um Valete ou mesmo um NGA, a SPA é uma necessidade incontornável. Agora, um Ferry, um Ary ou um Seth não precisam disso. Temos o nosso nomezinho mas o público não deixa de ser limitadíssimo. Se algum dia atingir o estatuto dos rappers que mencionei primeiro, irei certamente registar-me na SPA para ter tudo bonitinho e poder ser considerado “artista” aos olhos do mundo da música. Até isso acontecer, estou a chillar no meu canto.

 

Achas que há forma de inverter a tendência do rico mais rico e do pobre mais pobre? Como?

Isso nunca acontecerá. Com a excepção dos desportistas e artistas musicais, os ricos são filhos de ricos. Empresas são passadas de família em família, cunhas para os primos e sobrinhos são distribuídos com fartura…. Às vezes ocorre o tal milagre do rapazinho pobre que se mata a vida toda e consegue singrar mas é muito raro. E como é muito raro, os ricos vindos de berços de madeira também estão em minoria, o que significa que mesmo que quisessem (a mim parece-me que adoptam uma posição de “eu já me safei, fuck the rest), não conseguiriam fazer frente aos demais.

 

Estás disposto a fazer um som a gozar com o Passos Coelho?

Um som seria demasiado clichê….tenho uma coisa muito melhor em mente. Este Verão será feita.

 

Jornalismo em Portugal. Achas que é isento, corrupto, ou depende de quem o “escreve”?

É claro que depende sempre de quem o escreve. Mas muito pouco jornalismo é isento. Existe muito partidarismo nos orgãos de comunicação, cada um “puxa a brasa à sua sardinha”. Conflitos de interesses são frequentes, muito “tomá lá dá cá”. Muitas vezes são as fontes que são corruptas, mesmo que o jornalista esteja a tentar fazer um bom trabalho, elas apenas fornecem a informação que lhes convêm. A verdade é que nada é isento de interesses hoje em dia, nem uma ida ao café com uma mulher bonita quanto mais…

 

Para quem não te conhece ou para quem te conhece há anos, que mensagem gostarias de deixar para as pessoas que lêem o Tugaleaks?

Comam bué bróculos porque….NHEEEECKS

 

Canal de YouTube do Ferry