Hoje vamos entrevistar Ana Pacheco do MSE – Movimento Sem Emprego, que desenvolve uma luta pela não precariedade e por emprego em Portugal.

Movimento Sem Semprego

 

Ana, em primeiro lugar fala-nos um pouco sobre ti e como chegaste ao MSE.

No meu último trabalho tinha um contrato, mas era a termo. Pelas condições ‘melhores’ que proporcionavam, no panorama nacional, senti-me muitas vezes colocada ‘em dívida’ para com a empresa. Muitas vezes trabalhava fins-de-semana, horas extra, fazia funções fora do meu contrato (desde arquitectura, a design a acompanhar eventos, a fazer trabalho pesado de campo, etc). Eu gostava do trabalho que fazia e da sua multidisciplinaridade. Mas aborrecia-me isso e o facto de ter um contrato temporário ser constantemente utilizado como ‘arma’ para nos convencerem a fazer mais trabalho que o normal e não terem de contratar outras pessoas para o fazer.
Não conseguia marcar férias, pois eram constantemente alteradas. Fui sempre tentado dar resposta à quantidade enorme de trabalho que me davam, pois falava-se já na altura da quantidade enorme de desempregados e isso intimidava-nos ainda mais.

No fim de ter trabalhado alguns anos nestas condições, um mês exactamente antes do meu contrato renovar para efectivo, fui chamada mais uns colegas a uma sala à parte – disseram-nos que não íamos renovar contrato e deram-nos as cartas de despedimento em mão.
Caiu-nos tudo. O que nós trabalhámos em horas extra, fins-de-semana não remunerados… Ainda nos disseram que se precisassem nos voltavam a contactar, o que me deixou ainda mais perplexa.
Depois de perder o meu emprego muitos amigos precários vieram falar comigo em solidariedade.
Percebi que muitos deles sofriam abusos ainda maiores que o meu, mas por terem condições de trabalho ainda piores não diziam nada. Mesmo depois de serem despedidos.
‘é má onda’, diziam, ‘Depois não te querem a trabalhar’, diziam.
Comecei a perceber que há uma espécie de clima ameaçador para o trabalhador em que, se este reivindicar os seus direitos, ainda fica ‘mal visto’, em vez de ‘bem visto’ e corre o risco de não trabalhar mais. É como se de uma opressão dissimulada se tratasse.
Perceber esta realidade custou-me muito. Um dia no facebook vi um evento chamado ‘plenário de desempregados’. Fiquei curiosa e quis ir.
Quando percebi o intuito do grupo, o que defende e a sua posição não sectária – nunca me excluíram pelas minhas ideologias- decidi juntar-me à sua (nossa) luta. É um grupo apartidário, na medida que é independente de partidos e nasceu de desempregados. Mas não rejeita pessoas que tenham uma ideologia que se coadune com a do movimento. Há pessoas de todas as esquerdas e sem partido nenhum, claro.
Decidimos perder o medo e lutar contra as injustiças feitas aos trabalhadores. Enquanto desempregados não temos um patrão que nos oprima e meta medo.
Se pode condicionar uma entrevista de trabalho eu pertencer ao MSE? Talvez. Mas um patrão que não respeite os direitos dos trabalhadores nunca seria um bom patrão. Passei a pensar assim.

 

Há pessoas empregadas no MSE?

Não, pessoas activas no movimento e empregadas não. Há quem esteja empregado e solidário a assinar o nosso manifesto, no site. Mas nos plenários temos desempregados e pessoas com trabalhos temporários ou precários, porque o MSE considera isso um trabalho mas não um emprego. É um trabalho ‘com prazo de validade’. Eu, por exemplo, consegui dois clientes desde que estou desempregada para trabalhar por conta própria, mas dentro de alguns meses já não os terei nem subsídio de desemprego. Ficarei numa situação muito complicada.
Muitos de nós estão nessa mesma situação, ou a recibos verdes. E muitos outros estão mesmo completamente sem trabalho nenhum.
A opção pelo ‘emprego’ no nome do grupo, em vez de ‘trabalho’ foi meticulosa.

 

Movimento Sem Emprego

 

Que tipo de acções ou contactos o MSE tem feito para melhorar a qualidade do emprego em Portugal?

O MSE tem pouco tempo de vida, cerca de 2 meses, se não estou em erro. Nesse tempo já aderimos a várias manifestações e convocámos vários plenários de discussão em diferentes cidades, que se mostraram produtivos. Nesses plenários decidimos realizar outras formas de acções, das quais três já estão a decorrer:
A primeira, a mais importante, é fornecer apoio jurídico gratuito a quem esteja numa situação de desemprego ou desemprego iminente. Conseguimos vários juristas e advogados que se solidarizaram com o movimento e dão esse apoio e temos pessoas, também solidárias que contribuíram para a causa monetariamente, para alguma acção em que seja necessário algum apoio.
Mais depressa do que pensámos precisámos do apoio destes juristas. Desempregados já contaram com o nosso apoio e temos de momento uma das nossas activistas constituída arguida por distribuir panfletos à porta de um centro de emprego.
Outras acções consistem em ir ao centro de emprego divulgar o movimento e falar com desempregados, saber qual a sua consciência da situação do País. Fazemos ainda recolha de testemunhos que colocamos no site, para quem quiser tornar a sua opinião pública.

Depois temos outras acções em construção, mas como ainda estão em discussão nos plenários não as posso divulgar. São mais viradas para a tomada de consciência de ‘quem são os desempregados de Portugal?’ e ‘porque há tanto desemprego em Portugal?’ mas ainda não posso explicar muito mais!
Por fim realizámos ainda uma inscrição colectiva no centro de emprego, para tentar tornar as estatísticas mais realistas. O centro de emprego é uma coisa complicada que dá mais entropia aos desempregados do que trabalho e por isso muitos desempregados preferem cancelar a sua inscrição a fazer parte das estatísticas. Se não estiverem a usufruir de subsídio é quase certo que acabam por desistir…

 

Estava mais alguém a distribuir panfletos com ela? Porque é que achas que só ela foi constituída arguida?

Sim, estava eu e outras pessoas, devíamos ser 6, mas não tenho a certeza, a polícia fala em 8. Só foi ela porque a polícia quando chegou (eram dois agentes) tinham ordens para não nos deixar entrar no centro de emprego. Como queríamos fazer a tal inscrição e ia na vez dela ela explicou, que se queria mesmo inscrever. A polícia quis identificar-nos, mas disseram ‘um chega’. E como já estavam a falar com ela aproveitaram. Foi uma casualidade, podia ter sido qualquer um de nós. Os outros já se tinham inscrito e por isso não precisavam de voltar a entrar.

 

O que é que tu como pessoa pensas das ETTs (Empresas de Trabalho Temporário)? Por vezes podem “safar” alguma situação de maior aperto financeiro, ou devem-se evitar a todo o custo?

Não se pode ‘evitar a todo o custo’ um trabalho quando se precisa de comer. E é essa a arma do sistema que vivemos, é assim que somos oprimidos. Mesmo que ideologicamente saibamos que é de evitar, se for a única forma de colocar a comida no prato não podemos criticar quem o faça. Só podemos criticar quem explora as pessoas a um ponto tal que elas já aceitam trabalhar até em troca de géneros para sobreviver. Num país em que trabalhadores de empresas públicas chegam a ganhar meio milhão por ano… isto não se justifica! Há direitos constitucionais dos trabalhadores que não estão a ser cumpridos para outros terem em excesso. E pior, há pessoas a ficarem desempregadas propositadamente para este sistema ser ainda mais forte e ameaçador: Quanto mais desempregados tivermos, piores condições se conseguem dar aos empregados, através do medo.

 

Recibos verdes, achas que o actual modelo de “facturação” por conta própria dos Portugueses tem remédio? E como achas que vão ficar as dívidas que vários trabalhadores acumulam à Segurança Social?

Essa é outra injustiça que conheço bem, pois também já trabalhei assim. O maior problema não é o ‘recibo verde’ mas o ‘falso recibo verde’. Ou seja, uma pessoa que não foi contratada para não ter direitos e para a empresa poupar dinheiro. No entanto é obrigada a trabalhar o mesmo (normalmente mais, devido ao medo de despedimento) que um contratado. O trabalhador a recibos verdes paga a sua própria segurança social – são pelo menos cerca de 150€/mês (pode ser mais, tendo em conta o ano anterior). Se tiveres tido um ‘bom ano anterior’, no ano seguinte pode acontecer que o teu salário não chegue para pagar a segurança social! Tens de ser sempre extra poupado, pois, por exemplo, o teu ano anterior diz à segurança social que ganhas tão bem que podes pagar 200€ de SS! Se no ano seguinte conseguires um biscate que te dê 100€/mês ainda tens de arranjar dinheiro para pagar os restantes 100€! É ultrajante! No caso dos falsos recibos verdes, se fossem contratados era o patrão que teria de pagar a segurança social e com base no ordenado real, não numa ‘média do ano anterior’. Agora um falso recibo verde já pode conseguir que um patrão pague 5% da sua SS., mas não é quase nada! O pior de tudo é que em caso de despedimento não tem qualquer indemnização nem direito a subsídio de desemprego. Subsídio até pode, mas apenas se trabalhar dois anos a ‘falsos recibos verdes’ para o mesmo patrão (o que é raro) e só em 2013, creio. Por fim o trabalhador não tem direito a qualquer aviso, podem dizer-lhe: ‘amanhã não venhas e não te pago este mês, porque não acabou!’. Isso acontece muito. E salários em atraso também.
Posto isto, as dívidas de SS relativas a falsos recibos verdes deveriam ser pagas pelos patrões e não pelos trabalhadores.

 

Movimento Sem Emprego

Resumidamente, de quem é a culpa do desemprego? Políticas governamentais? Falta de apoios aos jovens e outros grupos mais afectados?

Políticas governamentais. A falta de apoio existe, mas não é um acidente. Quanto mais desemprego houver mais se conseguem submeter os que trabalham a condições precárias e difíceis. Pois pode argumentar-se na empresa que ‘há sempre alguém pior’. Isto pode funcionar de duas formas: Por um lado o trabalhador sente-se grato e em dívida para com o patrão. Por outro pode sentir medo do patrão. As duas servem, ele vai aceitar piores condições. Isto não é uma táctica nova! Muitos sociólogos e pesquisadores observaram este fenómeno, Karl Marx observou-o cuidadosamente e até lhe deu um nome. Chamou-lhe “Exército de reserva”. Também há quem diga exército de desempregados. Enfim, o nome não é importante: os desempregados são utilizados como moeda de troca para ameaçar postos de trabalho. E isso convém às políticas que Portugal tem seguido, servir as empresas. Apesar de na sua constituição isso não existir: o desemprego para apoiar as empresas.

Já o contrário existe: TÍTULO III . CAPÍTULO I. Artigo 58.º (Direito ao trabalho) Todos têm direito ao trabalho. Para assegurar o direito ao trabalho, incumbe ao Estado promover: a) A execução de políticas de pleno emprego;
Logo podemos concluir que as medidas impostas pela Troika e levadas a cabo por este governo são anticonstitucionais. No entanto devo admitir que os problemas do desemprego não são apenas deste governo, são de todos os que temos tido já desde há alguns anos. Nenhum governo CDS PSD ou PS tentou cumprir este artigo da constituição. A diferença é que a inconstitucionalidade agora está escrita num acordo e isso não pode ser.

 

Que alterações ao código do trabalho, funcionamento do IEFP ou outras o MSE propõe para diminuir a precariedade e a falta de emprego em Portugal?

Isso são várias perguntas!
Em primeiro lugar o código do trabalho. Nos plenários que realizámos, durante estes 2 meses de existência, infelizmente não tivemos capacidade de analisar ao pormenor o código anterior para ver que alterações positivas necessitaria, pois foi precisamente o momento em que uma data de alterações muito negativas lhe foram feitas pelo Governo. Acabámos por focar-nos nessas alterações que consideramos muito negativas e manifestámo-nos contra, pois são alterações que permitirão explorar ainda mais quem trabalha e gerar mais desemprego. Contrariamente ao ‘propagandeado’ uma empresa poder ter menos trabalhadores não significa mais riqueza para o país, mas apenas para o patronato. Se não vejamos: O patrão poupa no ordenado do trabalhador e isso gera-lhe lucros, mas os impostos sobre esses lucros serão mínimos, muito pouco vai para a ‘riqueza nacional’. Já mantendo o trabalhador, o patrão teria menos lucro, mas teria de pagar segurança social. O trabalhador por sua vez descontaria os seus impostos e ainda poderia manter um custo de vida menos poupado, pagando mais IVA e outras taxas, como taxas moderadoras, etc. É uma falácia acreditar que se gera riqueza com despedimentos. Por outro lado os trabalhadores que se mantêm nas empresas terão de fazer o trabalho que resta sozinhos, logo receberão menos, trabalharão mais, perderão qualidade de vida e estarão mais desprotegidos. O Patrão aumenta de facto ainda mais os seus lucros, mas muito pouco vai para o País. Por fim ainda se abre caminho a que se despeçam pessoas para se poder aderir à moda dos recibos verdes.

Quanto ao funcionamento do IEFP (ou outras), temos inclusive no nosso manifesto algo acerca disso. Para o explicar tenho que falar antes de outro ponto: Consideramos que tem vindo a ser feita uma ‘difamação’ subtil, da figura do desempregado. Vemos isto em declarações do governo, na imprensa, na comunicação social e agora já na boca de pessoas que conhecemos pessoalmente. O desempregado é desumanizado, nunca tratado como um cidadão igual nos documentos e discursos que nos chegam. Por outro lado, se consegue criar o próprio emprego, é Heroicizado. Ou é uma estatística, ou é fraudulento ou então é um Herói que venceu entre os cobardes que merecem o seu destino. Nunca é um cidadão normal. Isto serve um propósito e não é um acidente, é muito perigoso até. Já vimos isto na segunda guerra mundial, com os Judeus, ou na Roma antiga, com os escravos. A desumanização é um processo que serve para que o cidadão perca a sua empatia natural por outro ser humano, sendo capaz de cometer as maiores atrocidades contra ele sem sentir remorso. Assim quando em 2011 dois irmãos, um homem e uma mulher, ficaram órfãos e desempregados, ficaram sem-abrigo e mais tarde suicidaram-se numa linha de combóio. Pouco ou nada se falou disso e do que se falou pouco ou nada isso tocou a sociedade. Quando é na realidade um drama. E porque se quer a sociedade neste ponto de indiferença? A resposta é: para que os que trabalham não se identifiquem com eles e portanto não façam nada para os defender e os que estão na situação sintam culpa e vergonha e prefiram não falar disso. Um desempregado que não seja empreendedor, como os que aparecem bem-sucedidos nas revistas, não fez nada por si próprio, foi ‘piegas’ e por isso ‘mereceu’ morrer ou ficar sem-abrigo. A questão é que nem toda a gente nasceu ou tem condições para ter uma ideia genial e criar o seu negócio e não deve ser castigada por isso. A Meritocracia está a ser levada ao extremo. Posto isto, para o IEFP (e outros) temos o seguinte no nosso manifesto:
O Movimento Sem Emprego considera que um trabalhador desempregado não é um criminoso. Assim exige ainda, para além do presente nestes artigos:
O fim do tratamento discriminatório e punitivo do trabalhador desempregado:
– Fim do “termo de residência” enquanto tem direito às prestações sociais para as quais contribuiu;
– Fim da obrigação de aceitar situações incompatíveis com a procura de emprego ou melhoria de qualificações, como por exemplo o voluntariado, que não representa um verdadeiro emprego com os respectivos descontos para a segurança social;
O trabalhador desempregado, enquanto cidadão digno, apto e empenhado em encontrar emprego exige o fim da discriminação e difamação a que é sujeito pela imprensa, comunicação social e comunicados governamentais.
Exigimos ainda a criminalização do trabalho precário, temporário, sub-emprego e trabalho sem direitos que exijam ao trabalhador desempregado, precário ou sub-empregado as responsabilidades e deveres de um trabalhador empregado.

 

Já alguma vez pediram para serem recebidos por alguém do Governo para exporem as vossas “exigências”?

O Governo constantemente refere que este acordo laboral foi aprovado pelos parceiros sociais, mas não diz a verdade. Foi aprovado por apenas um dos inúmeros parceiros sociais, os outros estavam contra ou nem foram ouvidos. Neste panorama e tendo em conta a nossa recente existência temos de trabalhar ainda muito para que o Governo nos leve realmente a sério no dia que pedirmos uma reunião. Nesse dia não seremos um ‘grupo de uns poucos’ desempregados com algumas ideias e acções, como quando começámos, mas um grupo grande e coeso, preparado. Ainda hoje ouvi que a estatística oficial de desemprego subiu para os 15,3%. Já devemos ser bem mais de 1250 000 desempregados e nesse dia terão de nos ouvir.

 

Movimento Sem Emprego

 

Por último, ao desempregado ou precário que lê isto, que mensagem de força pretendem transmitir?

Em primeiro lugar transmitir que estar nesta situação não é uma vergonha. Pode acontecer a qualquer um, não significa falta de mérito, de talento ou profissionalismo. Quanto mais competentes e qualificados forem os trabalhadores desempregados, mais ameaçam os postos dos que trabalham, levando-os a produzir ao menor custo possível. O patrão pode ir alternando as pessoas na empresa sem medos: nunca terá medo de perder um bom trabalhador pois terá sempre outro igualmente bom disponível. É um esquema bem montado e feito mesmo para haver bons profissionais disponíveis e sem emprego. A prova disso é o crescimento de empresas de trabalho temporário: há trabalho para fazer, não se quer é dar direitos. A culpa do desemprego não é do desempregado.
Depois, no MSE temos o cuidado de dizer ‘trabalhador desempregado’. Porque mesmo sem emprego ou trabalho disponível não significa que a pessoa não seja trabalhadora. Não há trabalhadores e desempregados, há trabalhadores empregados e trabalhadores desempregados, mas todos são trabalhadores a querer trabalhar, ou mesmo a trabalhar.
Por fim os trabalhadores desempregados não podem perder a esperança no futuro e desmoralizar-se, somos muitos, temos força! Se nos unirmos e exigirmos é impossível não nos ouvirem, somos mais de 1250 000! Queremos fazer plenários em todo o lado e chegar a toda a gente. Um membro do MSE escreveu num apelo a uma das nossas acções: “Se fossemos um exército, seriamos o quarto maior do mundo.” Unamo-nos, então, façamo-nos ouvir.
“Unidos Pelo Direito ao Trabalho e à Dignidade”