José Esteves foi entrevistado pela jornalista Sandra Felgueiras da RTP. A entrevista nunca saiu, e foi feita uma queixa na ERC para apurar “se há ou não censura”.
Os trabalhos da Xª Comissão Parlamentar de Inquérito à Tragédia de Camarate estão em funcionamento desde Fevereiro deste ano. Os deputados investigam o que aconteceu na noite de 4 de Dezembro de 1980, quando o primeiro-ministro Sá Carneiro e o ministro da Defesa, Amaro da Costa, morreram na queda do avião Cessna no bairro de Camarate. A jornalista da RTP, Sandra Felgueiras, e as respectivas equipas de reportagem do programa “Sexta às 9”, estiveram vários dias com José Esteves, que, segundo contou ao Tugaleaks, o seu envolvimento no caso Camarate “foi o de fazer um engenho incendiário”. Mas a reportagem que teria resultado dessa investigação nunca foi para o ar no canal do Estado e José Esteves acredita que estão a silenciar a verdade sobre o caso.
A queixa apresentada na ERC resume-se ao facto da jornalista ter feito longas entrevistas tanto com José Esteves, mas também com Fernando Farinha Simões, actualmente preso em Vale de Judeus no âmbito de um processo relacionado com a já falecida jornalista Margarida Marante. O material jornalístico recolhido por Sandra Felgueiras nunca foi para o ar porque, afirma José Esteves, a jornalista achava que “as confissões eram contraditórias”. Na queixa de José Esteves na ERC pode ler-se que a jornalista “[n]ão foi investigar quais eram as nossas contradições, não fez jornalismo com o material que recolheu”.
O Tugaleaks teve acesso ao PDF da queixa e questionou José Esteves sobre a possibilidade de o colocar online na totalidade, escondendo a sua morada e dados pessoais. Este respondeu que podia colocar o PDF completo, pois era “um homem sem qualquer medo”.
Download do PDF da queixa apresentada
O Tugaleaks publica, na integra, uma entrevista com José Esteves, que tal como Fernando Farinha Simões confessam a sua participação no caso Camarate.
Como é, ou o que pode contar, do seu envolvimento no caso Camarate?
O meu envolvimento foi o de fazer um engenho incendiário. Os detalhes estão reservados para a minha ida à comissão parlamentar.
Como foi abordado pelo Sexta às 9?
Pouco tempo depois de ter sido publicada uma notícia sobre a confissão de Fernando Farinha Simões no YouTube, fui contactado telefonicamente pela jornalista da RTP, Sandra Felgueiras, que disse que queria fazer uma entrevista comigo e com Fernando Farinha Simões.
Quanto tempo demorou até ser abordado e até eles terem a sua entrevista?
Não sei precisar as datas, mas recordo-me que a jornalista pediu-me a mim e ao Fernando que dessemos o exclusivo à RTP. Ambos aceitamos e lembro-me ainda que a jornalista pediu que esperássemos até ao seu regresso de Inglaterra, onde foi entrevistar o casal McCann. Portanto, faz agora precisamente um ano, pois isto aconteceu entre o fim de Abril e início de Maio. Depois, quando regressou, falou comigo primeiro, porque ainda tinha de esperar pela autorização dos serviços prisionais para ir a Vale de Judeus entrevistar o Fernando, o que aconteceu.
Quanto tempo demorou até lhe indicarem que não iria sair a mesma para
o ar?
Não posso dar datas, mas sei que a jornalista deixou-nos com a indicação de que a reportagem com as nossas confissões iria para o ar no programa “Sexta às 9” quando a Assembleia da República anunciasse o início dos trabalhos da Xª Comissão de Inquérito. Ora, quando no início do Verão se soube que iria haver uma nova comissão, a jornalista comunicou-nos que, afinal, a mesma já não iria para o ar.
A justificação que a jornalista apresentou foi plausível na sua opinião?
A justificação da jornalista Sandra Felgueiras foi a de que as nossas versões não batiam certo. E que, como era uma jornalista responsável e isenta, decidiu que as entrevistas não iriam passar. Até lhe perguntei se tinha sido o Nuno Santos, então director de Informação, ou o próprio Presidente da RTP, Guilherme Costa, que tinham impedido a emissão. Mas, ela garantiu-me que não, que a decisão fora apenas dela.
— Ver também: Nuno Santos foi “impedido” de publicar informações do caso Relvas na RTP, segundo relata o jornalista Carlos Tomas
O que espera com a queixa na ERC? Que a informação que deu saia cá para fora?
Desejo que a ERC veja o conteúdo bruto das nossas entrevistas e que os senhores deputados da Assembleia da República peçam também para as ver. No fim, decidam se as nossas confissões batem ou não certas e que confiram o que a RTP mantém fora do alcance dos telespectores portugueses, numa atitude clara e óbvia de censura.
Considera que o jornalismo de investigação deveria ter separado as duas versões e tentado comparar ou averiguar a verdade tão bem quanto possível?
Meu caro senhor, pelo que se me dá a perceber, em Portugal já não há jornalistas. O jornalismo não tem qualquer obrigação de fazer investigação policial ou julgar pessoas. Se a senhora jornalista Sandra Felgueiras diz que não acredita nas nossas versões, ela não é nem polícia ou juiz. Como jornalista isenta e responsável que diz ser, tinha, no mínimo, a obrigação de informar o povo português de que havia declarações que não batiam certo entre mim e Fernando Farinha Simões. Isto é uma necessidade jornalística devido ao óbvio interesse público do que está em causa, ou seja, a morte do primeiro-ministro e a investigação que ainda está a decorrer na Assembleia da República. Não é preciso perceber muito de jornalismo para ver que há aqui uma clara intenção de censurar as nossas confissões.
O que faltou à RTP neste processo?
Foi tê-los no sítio e passar as confissões que demos à jornalista Sandra Felgueiras para o “Sexta às 9”. E, esperamos, que ainda lá estejam e não tenha sido apagadas.
Almoçou e viajou em carros da RTP, teve o cameraman sempre consigo e visitou alguns locais. Tem ideia do tempo que foi “perdido” do seu lado e do lado da RTP?
Não considero que o tempo dispendido na busca da verdade possa ser considerado “perdido” ou contabilizado, mas isso é uma coisa que a RTP poderia responder melhor do que eu. Tanto eu como o Fernando continuamos a considerar válidas e actuais as declarações que demos há um ano.
Se algum outro órgão de comunicação social voltasse a fazer as mesmas perguntas e promessas de exclusivos, iria aceitar falar com eles, ou perdeu a fé no jornalismo em Portugal?
Quanto a ter ou não fé no jornalismo, estou sempre confiante de que possa haver quem queira fazer jornalismo, como parece ser o caso da Tugaleaks.
O Tugaleaks contactou a RTP, que até à publicação deste artigo não comentou o caso.
Nota adicionada às 21h20 de 01/05/201: o processo na ERC tem o número ERC/04/2013/370.