O Tugaleaks apresenta um relato do dia de ontem em S. Lázaro e um pouco por toda aquela zona. Houve protestos em Lisboa e Porto. Fomos todos S. Lázaro ontem. Relato de Ricardo Castelo Branco.
Foto Stress FM
Acordei cedo para tratar de assuntos pessoais, arranjei-me e levei a cadela á rua na sacrossanta rotina do passeio matutino com pausa para bica e copo de água no café do bairro. Voltei para casa para logo voltar a sair. O sol reinante prenunciava um dia quente, o que se veio a verificar logo depois sob a forma de um telefonema: «A polícia entrou em São Lázaro. Estão a despejar. Passa a palavra!» As informações erão chocantes e dirigi-me imediatamente para lá enquanto telefonava para pessoas que manifestavam o mesmo choque e se colocavam as mesmas interrogações que me passavam pelo espírito: E a providência cautelar? E os 90 dias? Com que direito, legitimidade e legalidade desobedece um orgão da administração local a uma deliberação de um tribunal? Não será isto um caso de desobediência qualificada? Ao mesmo tempo crescia em mim a curiosidade de tomar conhecimento com um hipotético documento que legitimasse uma intervenção camarária e policial que considerava imoral e se me afigurava de duvidosa legalidade. Até aqui nada a que a Câmara Municipal de Lisboa não me tivesse já habituado. A mim e a todos os que como eu seguem atentamento tudo o que já foi feito, o que estava a ser feito e o que continuará a ser feito por todos os que dão corpo a um projecto cidadão que alia a requalificação urbana a valências culturais e sociais.
Finalmente, ao virar da esquina, lá estava São Lázaro. Na rua, estavam as pessoas que conheci, não por palavras mas por actos, como pessoas altruistas, capazes de arregaçar as mangas e meter mãos à obra, empreendedores num país onde o empreendedorismo só é politicamente bem visto quando enquadrado por agendas polítiqueiro-partidárias, por critérios especulativos ou por discursos propagandísticos. A separá-los do edifício estavam os mesmos cavalheiros que nos últimos tempos se tornaram conhecidos por criativas formas de interpretação das leis e do seu papel de protectores dos cidadãos. Interpretações responsáveis por transformar aquilo que considero a mais nobre das ocupações – servir o próximo – em ademanes servis de lacaios acéfalos muito para além do aceitável mesmo quando se imperasse um carreirismo baseado na aceitação acrítica das vontades ditatoriais e prepotentes de um poder central e de uma administração local . Como em todas as ocasiões que escapam um pouco á normalidade, o que começa a não ser o caso devido à frequência, lá estavam os normais grupos de mirones. Enquanto me aproximava ia ouvindo os comentários: «Num país em que os gatunos andam à solta a polícia só sabem chatear quem faz bem!», «Isto não há direito!», «Tanta polícia para quê?»,. «Cambada de chulos!…»…
E lá estava uma autêntica frota: popós da polícia municipal, da psp, uma carrinha azul (mais tarde chegaria outra), duas carrinhas da municipal. Para o transporte lá estava uma carrinha de uma empresa privada de transportes com sede no largo do Mitelo (ali ao pé do Campo dos Mártires da Pátria). Não pude deixar de pensar sobre o quão estranhas formas se pode esconder o desbaratar dos dinheiros públicos. Entretanto comecei a cumprimentar amigos e conhecidos, fui sabendo notícias. Tinham detido um rapaz mas o nome deste nada me dizia, ninguém tinha visto nenhuma ordem de despejo, a polícia recusava o diálogo com um advogado de São Lázaro 94 apesar de este se ter identificado como tal, … As restrições à livre circulação de pessoas e viaturas, o aparato policial e policial a presença dos agentes amantes da testosterona fizeram-me temer o pior. Ao fundo, fardadinha e pançudita, de pingalin na mão, agitava-se a figura de opera bufa do costumeiro general de pacotilha a comandar as forças no terreno. Dirigi-me a um polícia que, apesar do ar mal-humorado evidente, não evidenciava as mordazes intenções que lia no olhar de outros. Perguntei-lhe cordatamente onde estava a ordem de despejo e se sabia que estava em desobediência com uma decisão judicial. Respondeu-me com um brilhante: «Não lhe respondo!» Ainda retorqui que o devia fazer porque a isso era obrigado pelos deveres profissionais e pelo facto de os meus impostos e os de todos os cidadãos lhe pagarem o vencimento. Respondeu-me que devíamos pagar mais enquanto se afastava.
Entretanto alguém pegara numa arma de destruição maciça: um tambor. Com um ameaçador andar aproxima-se um cavalheiro de olhar injectado que adverte que se está na vizinhança de dois hospitais. Querendo marcar uma posição de protesto manifestando respeito pelos doentes o rapaz começa a tocar em surdina batendo com as baquetas na parte lateral do tambor. É agarrado, lançado por terra, vários cavalheiros ordeiros lançam-se sobre quem não oferecia resistência provando que as forças da ordem ainda são capazes de heróicas façanhas. A arma essa foi sequestrada sem que fosse apresentada justificação mas deve ser por se tratar clara e manifestamente de uma arma de destruição maciça.
Entretanto a indignação aumentava. Após uma breve troca de palavras o advogado, ao lado de quem estava, é arrastado violentamente, lançado ao chão, algemado, conduzido para uma carrinha descaracterizada.
Passado alguns minutos uma amiga protesta contra o facto de um agente estar a pontapear as suas coisas. Uma das poucas que escaparam à voragem sequestradora. É manietada e levada como não se leva um criminoso para uma carrinha. Tem um ataque de asma e nem assim lhe devolvem a bomba no que me parece ser passível de ser classificado como omissão de socorro. As pessoas mobilizam-se para lhe ir arranjar uma bomba. A situação regulariza. As carrinhas partem com os detidos tendo os agentes presentes continuamente recusado dizer a destinação. Acabamos por obter algumas informações sobre o paradeiro dos nossos companheiros. Entretanto o grupo partira-se. Uns tinham ido para um protesto junto do gabinete da vereadora. Decidi esperar um pouco mais por notícias dos detidos. Finalmente chegaram três. O músico, a rapariga e o outro cujo nome não tinha reconhecido. O advogado esse tinha ficado detido e até ao presente momento apenas soube que ia ser presente a juíz.
Fui para a baixa onde encontrei o grupo na rua do Ouro, em frente ao edifício onde se situa o gabinete da vereadora. Fiquei a saber que tinham chegado a entrar no edifício mas a vereadora tinha recusado encontrar-se com eles. Deliberou-se fazer uma assembleia junto ao arco da Rua Augusta onde se decidiu fazer um protesto ás 19h no Martim Moniz. Entretanto chegara o convite para um grupo de 4 pessoas se reunir com a vereadora Helena Roseta. A assembleia decidiu pela não comparência por não considerar correcto dialogar com quem usa de prepotência. Pessoalmente acho muito perturbador, anormal e pouco coerente que alguém que agride por intermédio dos seus esbirros caceteiros de manhã convide os agredidos para uma reunião da parte da tarde.
Volttei para São lázaro onde três cavalheiros de farda se encontravam encostados à soleira da porta. Esbocei um sorriso saudoso ao pensar nas carinhosas repreensões do meu avõ sobre o hábito de me encostar á parede e o ser um tipo de comportamento próprio de um certo sector de actividade profissional liberal. Alguns membros do grupo de São Lázaro 94 ainda se encontravam nas redondezas. Nos olhares lia-se a revlta, a indignação, a vontade e a certeza de continuar.
Fui tratar das minhas coisas, chatices de saúde que me impediram de comparecer na manifestação. Quando sai do Hospital passei pela casa, estava entaipada como se os tijolos e o cimento fossem capazes de matar uma ideia. Soube depois que a polícia tinha andado a brincar aos Robotcop’s, tinham cercado a manifestação, da posição pacífica dos manifestantes apesar do clima de intimidação criado pela polícia, da intervenção de um grupo de catequistas junto das forças desordeiras da ordem, de mais uma vez se identificarem e revistarem cidadãos sem outra razão para o facto de estes protestarem e assumirem a plenitude da sua condição de cidadãos, por terem vontade de reconstruir, de revitalizar zonas degradadas, de recuperar edifício deixados ao abandono por uma administração local que deveria cuidar do património e não deixá-lo apodrecer devido a questões de especulação imobiliária. Descobri igualmente que a Câmara pretendia muito louvavelmente concretizar projectos maturados ao longo de 17 anos de abandono pelo que tinha entaipado a casa e que, para dar legalidade ao evento, tinha ido invocar um artigo do Código de Processo Administrativo que lhe permitia desobedecer a uma decisão judicial invocando uma razão de cuja validade a mesma CML era simultaneamente promotora, juiz e aferidora.
ESTE FOI, DEFINITIVAMENTE, UM DIA DE VERGONHA!!!
Ricardo Castelo Branco