Fonte: Semanário Expresso de 18 de dezembro 2010
Texto: Joaquim Gomes
Uma família de Vila Verde está a ser julgada por escravizar um deficiente mental. A GNR libertou-o em 2004
Rui vive há seis anos com uma família de acolhimento, em Revenda, uma pequena aldeia minhota. Foi para ali enviado pela Segurança Social depois de uma operação da GNR numa quinta de Vila Verde ter culminado
com a sua libertação. Há 24 anos que era ‘escravo’ do primo, Casimiro Silva, da sua mulher Rosalina e dos dois filhos. A designação, de outros tempos, é do próprio Ministério Público de Braga que não teve dúvidas em levar toda a família a julgamento, acusada de escravidão de um homem com deficiência mental ligeira, que acolheu ainda menino de cinco anos. No dia 7 de janeiro conhecem a sentença. Arriscam uma pena entre cinco e quinze anos de prisão.
Na acusação reconstroem-se os anos de Rui. “Tinha o bilhete de identidade caducado desde 2000, nunca tinha usado sapatos, nem relógio, não via televisão, nunca tinha assistido a um jogo de futebol, nunca tinha passeado, não conhecia a cidade de Braga e nunca tinha visto o mar. Negaram-lhe o direito à alfabetização. Cedo o transformaram num mero criado, analfabeto e submisso, a quem nem dispensavam os cuidados de alimentação, higiene e saúde mais básicos.
E foi assim que, confinado à quinta e privado pelos arguidos dos mais elementares direitos da criança, cresceu e se fez homem este guardador de vacas. Aproveitando a sua deficiência mental e ignorância, que
fomentaram, reduziram-no à mera condição de instrumento de trabalho, impondo-lhe labor extenuante”.
Os pormenores são arrepiantes.
Mais ainda na primeira pessoa. “Obrigavam-me a cuidar das vacas, muitas vacas, eu não sei quantas, porque nunca aprendi a contar”. “Levantava-me muito cedo, ia tratar das vacas para depois apanharem o leite e costumava trabalhar até à noite, às vezes adormecia cansado”. “Os meus primos batiam-me sempre muito, com uma mangueira, às vezes com um pau ou uma vassoura. Às vezes obrigavam-me a pôr a língua na cerca elétrica. Atiravam-me a um
tanque de água fria para me castigarem quando eu não fazia as coisas como eles queriam, mas eu nem sequer sabia fazer as coisas como eles diziam”.
O dia em que viu o mar Rui tem agora 36 anos e não gosta de falar dos 24 de escravatura. Chora sentado à mesa na casa de Rosa Gonçalves, a matriarca da família de acolhimento — a quem chama mãe. O livro dos deveres está aberto à sua frente. Está agora na terceira classe. Já sabe ler, escrever, contar, comer à mesa com talheres, lavar os dentes e ir de autocarro para a Escola de Prado, em Vila Verde. Há 18 anos que Rosa recebe pessoas enviadas pela Segurança Social. “Não escondo que este foi o caso mais difícil, foi um desafio para nós. De início parecia um bichinho a fugir das pessoas”. Na primeira noite, Rui acordou aos berros e a chorar, gritava para não lhe baterem. Nos primeiros dias
levantava-se antes das seis da manhã. Rosa acalmava-o e dizia-lhe que ali não precisava de trabalhar. Mas se ouve um barulho súbito, ainda salta de medo.
“Desde que veio festejamos sempre o seu aniversário. Ele nunca tivera uma festa de anos, ficou todo contente, parecia uma criança, nunca recebera um único brinquedo”, diz Rosa. Também o levaram à Praia da Apúlia e gravaram para sempre o ar de espanto, os “olha tanta água junta!” repetidos pela incredulidade. “Uma coisa que também achamos curioso é que ele não conhecia o dinheiro. Só quando lhe ofereceram uma carteira é que passámos a dar-lhe moedas e notas. Já sabe fazer trocos e tudo o mais”.
Filho de pai incógnito — supostamente um empreiteiro de Vila Verde, segundo as investigações da GNR local que deram lugar a uma ação cível de investigação da paternidade —, Rui viu a sua vida mudar quando o avô, um lavrador da região conhecido por ‘arcebispo’, morreu. Ele tinha cinco anos e a mãe, igualmente deficiente mental e internada
numa instituição, não podia cuidar dele. Em circunstâncias não esclarecidas, mãe e filho viram-se privados dos terrenos do ‘arcebispo’, ocupados por Casimiro Silva, que ficou também com a
tutela da criança.
Casimiro jura “ter tratado sempre o Rui como a um filho”. E diz que, tal como os dois filhos, também Rui “teve festas e fez todas as comunhões, a primeira, a solene e o crisma”. Rui continua a chorar
esses dias e ontem, em tribunal pediu, pela primeira vez, algo para si: 200 mil euros de indemnização pelo trabalho intensivo não pago e pelos danos físicos e psíquicos.