Sob o chapéu de uma retórica vazia, em contradição com a evidência proclamada pela realidade, anunciam-se agora uma panóplia de medidas para o ensino público que mais não são que a sua condenação à morte. Não são medidas que a realidade social do país exija. São medidas de carácter profundamente ideológico, que respeitam um programa político aplicado já a outros sectores da sociedade. Representam o fim do estado social e o subsequente reforço do estado policial. Um estado mínimo, reduzido a batalhões de cassetetes para imposição de uma ordem ficcionada e imposta pelas elites no poder.
Num momento em que se agravam as dificuldades económicas de grande parte da população, em que o fraccionamento da sociedade entre os que tudo podem e os que nada têm se aprofunda, em que o número de famílias disfuncionais aumenta, os apoios sociais diminuem e a precariedade e o desemprego crescem, a opção do governo prossegue claramente na via da repressão, da imposição de uma disciplina autoritária, largamente punitiva e da exclusão dos pés descalços no acesso a um ensino de qualidade, agora ratificado pelo actual Estatuto do Aluno e Ética Escolar.
Para o compreender, teremos obrigatoriamente de recordar o anunciado aumento do número de alunos por turma (tornando-as absolutamente impraticáveis), a diminuição do número de professores, bem como o corte de financiamentos, doravante distribuídos conforme o lugar obtido pela escola no ranking geral.
A elitização do ensino torna-se patente não só entre privado e público (entre estratos sociais mais e menos favorecidos economicamente), como no próprio interior do ensino público. Sejamos claros: em escolas com condições de trabalho absolutamente improdutivas e inoperantes, os alunos mais favorecidos procurarão os melhores colégios privados, os ainda remediados entregarão os seus filhos a professores particulares para apoio extraordinário e a vasta maioria ficará condenada à ignorância e ao conformismo imposto por severas medidas disciplinares. As escolas de baixo ranking perderão qualquer possibilidade de optimizarem as suas performances.
A responsabilidade desta inoperância, contudo, passa – num passo de mágica – a atribuir-se ao indivíduo. Não à política do governo para o ensino, mas antes aos pais e alunos. O sucesso ou insucesso escolar, como se tal fosse possível, é, segundo a filosofia subjacente à referida ética escolar, da inteira responsabilidade individual; como se existíssemos descontextualizados do mundo e da realidade social que o enforma.
Expulsar do ensino oficial, com pena máxima de três anos, um aluno que manifeste o seu desinteresse escolar pelo absentismo, mais não significa que condená-lo perpetuamente à categoria de Epsilão, trabalhador escravo de uma sociedade cada vez menos admirável e nova. Porque o castigo se revelará, afinal, uma forma capciosa de o impedir de regressar.
Penalizar pais, facilmente despedidos dos seus empregos mal remunerados, com coimas ou corte dos apoios sociais por não responderem presencialmente a uma convocatória (quase invariavelmente marcada para horário laboral) revela, uma vez mais, a natureza ideológica da medida; para além da impraticabilidade da mesma, será mais um contributo para a varridela para debaixo do tapete da tessitura social que se constrói, daqueles que à priori se vêm condenados a não escapar à base da pirâmide social, cada vez mais afunilada.
Durante toda a Idade Média o ensino, exclusivamente orientado para a formação intelectual do aluno, caracterizou-se pela ausência de critério etário (crianças e jovens conviviam em paridade com adultos na mesma escola) e pela inexistência de uma autoridade disciplinar ou uma hierarquia escolar de que dependessem os estudantes; eram antes as confrarias, as associações e corporações que tratavam de manter o espírito da comunidade através de passatempos e festas populares. Só com a ascenção das monarquias absolutistas, a classe dirigente reprova este sistema de camaraderies substituindo-o por uma organização sustentada em critérios de obediência e hierarquia autoritária. Transformação esta que, aliás, se expande a toda a sociedade. O Renascimento implementa um espírito de disciplina cada vez mais tenebroso, assente na delação entre colegas para quebrar a solidariedade do grupo e no uso severíssimo de castigos corporais, para mortificar o corpo e inculcar o próprio princípio de autoridade e obediência. E a partir do Séc. XVII, estabilizando-se definitivamente a seguir à revolução burguesa do Séc. XVIII, cresce progressivamente a diferenciação entre um ensino clássico, para as camadas privilegiadas e um ensino exclusivamente prático, orientado para o povo. No século XIX seria precisamente esse ensino prático, orientado para o povo, a fornecer a tão necessária mão-de-obra para a florescente indústria. Um cisão assente não só entre as diferenças de classe, como na separação entre pensamento e prática ou teoria e manualidade.
E estas são as questões centrais às quais retrocedemos, num momento de esplendor autoritário concentrado nas mãos de uma elite governativa, enformada num regime centralista, afastado das necessidades dos concidadãos cujos interesses supostamente deveriam proteger, para antes governar por imposição e decreto numa clara orientação para a defesa da sobrevivência de uma minoria, numa prática política em nada democrática. Os futuros desempregados, entenda-se, querem-se ignorantes e obedientes, respeitadores de uma máscula hierarquia e, sobretudo, condicionados a um código de civilidade patético, se recordarmos os movimentos de libertação das décadas de 60 e 70, mas justificados por uma falsa necessidade de respeito à autoridade, a reconhecer não pelo seu mérito mas, antes, aprioristicamente, pelo facto de se impor institucionalmente.
Entre 1703 e 1875, foram publicadas em França 126 edições de uma obra de La Salle, fundador das escolas dos Irmãos Cristãos, intitulada Civilidade Cristã. Numa passagem que considero elucidativa do retrocesso a que me refiro, pode ler-se:
“A educação e o pudor exigem que todas as partes do corpo, à excepção da cabeça e das mãos, fiquem cobertas: assim, é indecente ter o peito descoberto, os braços nus, as pernas sem meias, os pés sem sapatos. Nunca é decente falar dessas partes do corpo que é preciso esconder, nem de nenhuma das necessidades com que a natureza sujeitou o homem, e também não se deve nomeá-las”.
Entre os princípios de civilidade anunciados por La Salle há três séculos, ou os actualmente instituídos por Nuno Crato, existe apenas uma diferença de grau. Os decotes das meninas, bem como o comprimento das suas saias, ou a quantidade de elástico à vista nas boxers dos meninos , passarão a ser determinados por regulamento a ditar pela tenebrosa e ressuscitada figura de um reitor. Há que confinar a plebe a tão convenientes manuais de civilidade (anacrónica na sua separação corpo/mente e respectiva estigmatização do primeiro) e à aceitação do seu lugar na sociedade – o lugar dos que não têm voz nem papel activo na construção política e social. Também as práticas democráticas desaparecem do ambiente escolar; há que varrê-las definitivamente das nossas vidas para que a nova ditadura subsista.
Das camaraderies a esta atmosfera coerciva em que o professor é figura autoritária, em que se incentivam regras que comprimem ao máximo a personalidade do aluno, gerando-lhe a passividade, a submissão e o conformismo pelo medo da punição correlativa à transgressão, é a democracia que definitivamente se perde. É o fulgor humanista de um ensino igualitário, universal, de qualidade que definitivamente se enterra nas brumas de um desejo iludido.
Download da Proposta de Lei: Estatuto do Aluno e Ética Escolar
Cristina Paixão